Travessa Villa do Longa número 6

Parei, como se a ideia de parar fosse possível. Num momento de reflexão, tentei contemplar o invisível para apreender dele a sua intensidade. Às vezes, o ato de ver era excessivo e fazia escapar o que era intenso; ver às vezes sufocava. Assim, desejei desver as coisas, contemplar e descontemplar simultaneamente, não como um jogo de palavras, mas como uma realidade. Na tentativa de alcançar o que fazia das coisas únicas e ganhar espaço para respirar, recorri a estratégias corporais, aos sortilégios, para reencontrar as coisas como se fosse a primeira vez e me inverter antes que elas desaparecessem, a fim de ouvir suas artimanhas. No jogo de ver, desver e rever, acreditei também ser possível retirar a razão e a continuidade do caminho do sentir, para encontrar a intensidade que as causava. Para me encontrar com o seu movimento, sua dança.

Houve algo nas intensidades que me preocupou mais do que outras coisas. Fui atento às ausências do que via. Sabia que era nas ausências que a intensidade se escondia, e mesmo que quisesse desver o mundo inteiro em busca das intensidades, ver essas ausências possuía um certo absurdo cortante que delibera a carne. A ausência, afiada, apareceu sem fonte, despossuída de origem, manifestou-se no corpo num afeto outro, uma memória vivida sem imagem, algo que emana do agora de todos os agoras e desordena tudo, tal como um conhecimento ancestral que atravessa o tempo e cria em nós um novo afeto. Esse afeto gerado no seio da ausência foi uma força fraca, calma, imóvel, vazia, que se estendeu de mim ao mundo, ou vice-versa, do mundo a mim, tocando-me e fazendo-me perceber onde estava. O mundo foi uma percepção repentina do agora no sentido de que nele se criou, entre nós, um pequeno espaço, tão breve que careceu de muita atenção para ser notado. Foram coisas sem leis, fatigadas, que vagaram numa lenta ordem aparentemente organizada, fazendo questionar a sua existência.

Falo aqui de um convívio nas entranhas de uma morada nos arredores de Lisboa, mais precisamente em na Travessa Villalonga número 6, lá as imagens se tocaram, uma a uma, com suas camadas e superfícies, e eu as pude perceber, mesmo que por instantes. Havia um estado de atenção a elas, que permaneceu desatenta, uma atenção desatenta aos objetos que as compunha objetos transparentes. Na quela casa, as palavras, quase todas, foram predicados que puderam ser atribuídos aos objetos diversos numa desordem peculiar. Senti que houve uma coexistência, algo mais, por meio de uma relação ainda muito tênue, e, simultaneamente, imanente a essa coexistência. A casa se revelou na pausa como o primeiro elemento do absurdo que tomaria a minha experiencia la. Tudo pôde ser percebido no seu interior ate o agora revelou a sua presença em seu âmago digestivo. O agora foi um acordo misterioso com o tempo, um acordo que nos precedeu e quase nos foi oculto. E nesse acordo, houve sequências de infortúnios inimagináveis, que sustentaram a causa do cansaço ininterrupto das paredes, do teto, a causa do desgaste negantropico. No entanto, a distância entre esse agora e o que estava por vir sugeriu que o tempo se repetiu integralmente e que nada esteve perdido ou diferente. Naquela casa o tempo esteve sempre presente no sentido de ser sua própria causa, de se repetir numa similaridade que foi a sua essência. O agora não permitiu mais do que a contemplação dele na sua repetição, que no interior, nos seus cantos e angulas geravam um fora do tempo.

Residia ali o agora. Era naquela casa onde o agora fazia morada. De alguma maneira, entrar nesse espaço do agora conduziu a simular o que gostava de chamar de outro, um outro no agora, um outro elemento do tempo que contemplou sem interferir em sua construção posterior. O aqui, surgiu na pausa, revelou um agora pleno, completo em si, como uma imagem perfeita, absoluta e cristalina composta de pura luz, luz de pedra, sólida. O agora se impunha em todos os cantos, exercendo sua força sobre as imagens que emergiram dentro dele. Estaria eu enlouquecendo, ofuscado por todas essas luzes, pelas imagens que fui e que produzi? Agarreime ao que me foi possível, para compreender este tempo passado, as histórias de outro agora com seus aromas, suas cores e todas as vidas que por ali passaram, num único instante. Na casa, o tempo era suspenso, e navegar por entre as diversas camadas do tempo era uma questão de necessidade. Compreendi, então, os elementos do tempo como espaços e, nesse espaço, tudo surgiu ao mesmo tempo. Em cada um deles, tudo o que nunca foi presente para mim surgia desvisto, era um agora repleto de ausências.

As camadas do tempos eram campos infinitos de um “aqui”, território, que fazia do agora seu contorno. O aqui é um múltiplo que se dissolveu a cada novo agora, em cada novo ser. E se reconfigurou com certa indicio de finitude. O agora se dissolvia, mas diferente daquele outro agora, este aqui possuía algo próximo, íntimo, uma repetição que engendra a diferença mais precisa. Não digo próximo de forma vulgar, mas uma proximidade que transcendia a física, talvez um hábito, de se revelar por camadas, que necessariamente se repetia sem sentido. Um algo comum incondicionalmente, uma similaridade sem ontologia ou simbologia, um toque que o obrigava a passar. Aqui, o absurdo não precisou percorrer grandes distâncias. O aqui, espaço absurdo do agora, revelou a distância percorrida e a vastidão da ausência de qualquer outra coisa. Todas as cosas na quela casa estavam carregadas de ausências.

Pude perceber que naquele pequeno pedaço de tempo em que coexistimos, construímos uma imagem juntos, eu e o absurdo que se expandiu. Naquele agora, houve uma pequena pausa, não no tempo, nem na casa, mas no próprio agora. Uma pausa no agora, que trouxe à tona uma falta incompreensível, um oceano em sua intensidade. Um oceano inavegável que, de alguma maneira, emergiu o que não era pessoal nessa relação, um oceano de ausências que seguravam o teto que caiu, não com o objetivo de me prejudicar, mas porque a queda era inevitável para ele. E o meu agora era apenas uma imagem de um território possível de histórias mais vividas. A casa era assim uma vibração que se desgastava por fora e se complexificava em múltiplas camadas de ausências por dentro. A casa era um conjunto de agoras, espaços, movimentos e infinitos.Ao relembrar, novamente a falta apareceu, mas desta vez se encheria de imagens, e o corpo reagiria. Aqui, a relação com o tempo, comigo mesmo, se desintegraria, cedendo espaço a algo que evocaria lembranças, apenas lembranças, sem tempo e talvez sem ausência, um movimento semelhante às imagens que se desvaneceriam entre o vermelho e o laranja, em cores sem forma, uma recordação sem objeto. Um encantamento desfeito, o teto e sem as suas faltas.

A coincidência que diminuiria a distância seria a falta que daria origem aos eventos futuros, cheios de desorganizações simultâneas e reflexões. O aqui, marcado por carências, faria a vida aparecer como ela era: caótica e imprevisível. E pelas janelas daquela casa, formariam-se imagens que não parariam de se mover. Mas eu, sim, eu manteria a pausa, mas me moveria por não ter respostas sobre o vazio que existiria na pausa, apenas algumas lembranças das possíveis respostas que não possuiria. Observaria, para ter certeza se conheceria ou reconheceria as coisas que me cercariam, e usaria a pausa como uma ilha usaria o oceano. Agarrar-me-ia ao tempo como alguém que tentaria conter o tempo por meio de um relógio que não reteria os segundos. Eu me agarraria ao tempo, pelos objetos provenientes de outros lugares, vindos de um aqui outro, que desacelerariam, que já não seriam um lugar, apenas uma memória sem peso e repletos de distância. Aqui, lembranças e lugares seriam, às vezes, a mesma coisa, seriam imagens que apareceriam e desapareceriam, cada uma em seu próprio ritmo. Seriam imagens que vibrariam e interagiriam livremente umas com as outras, em um infinito de luzes pálidas, duras como pedra, como memória. Seriam luzes sem luz. E se me perguntassem sobre as imagens com as quais conviveríamos naquela casa, se elas desapareceriam? Eu responderia sempre que elas se ausentariam. Não acreditaria no desaparecimento das coisas, mas em um vasto e longo gesto do tempo que produziria imagens de tudo, imagens sem forma, sem objetos, imagens que seriam memórias, voluntárias ou forçadas por um sequestro, imagens que se fariam necessariamente, assim como a memória. E nesse ser da memóri, residiria um eterno desmantelar, um universo contemplado parte por parte. Nada aqui escaparia ao olhar. Observar seria escavar cada pedaço até que tudo se movesse, correndo o risco de, nesse moviment, desmontarmos todo o universo, todos os tempos, desmontarmos completamente. E nesse desmonte, saberíamos que apenas uma imagem restaria. Uma imagem não orgânica de um pensamento cristalizado, indivisível, que não seria físico nem metafísico. Mas seria a causa de seus próprios efeitos e o efeito de sua própria presença. Algo flutuante, paradoxal, que encapsularíamos dentro do sentido e do universo das coisas. Fixaríamo-lo porque, de alguma forma, saberíamos que, em seu interior, construirmos tudo, necessariamente.

Naquele interior onde o presente seria a própria causa, emergiriam dois espaços de sua natureza que se tocariam. E entre esses espaços, haveria uma divisão com a mais tênue noção de movimento. Movimento que, na existência de um dentro e um fora, fluiria entre eles. E ao moverse, deslocaria-se entre os lugares do tempo, permitindo a rotação e as ondas, e construiria coisas que quase não se moveriam, nós. Esses espaços seriam o próprio tempo e seu delicado movimento da passagem do presente para o presente. Esse movimento sugeriria que o passado estaria sempre por vir, solicitando nossa atenção. E quanto mais atenção dediquei a ele, mais vagarosamente o tempo pareceria passar. Aqui, lutaria para não usar a reminiscência como recurso para encobrir esse desaparecimento que provocou a aparição da falta. Havia algo único na falta, algo que nos constituiria sem possuir qualquer matéria como estrutura de repetição, e que, ao mesmo tempo, não participaria do presente. Seria preciso incorporar o agora para entendermos o que seria esse infinito de imagens.

A única coisa que pareceria sensata aqui seria que estaria diante de imagens, nada mais. Imagem-ausência que significariam, significariam ou significariam, mesmo que temporariamente, e que estariam de alguma maneira arquivadas pela existência, seguindo repetindo-se, tornandose parte da existência e gerando faltas que carregaríamos. Essas imagem-ausência seriam ambíguas em sua temporalidade, seriam forças que singularizariam ou individualizariam cada pedaço contemplado dessas forças, seriam ausências presente que nunca seriam presentes no indivíduo. Seriam forças transcendentais diante da presença tempo. Uma imagem absurda de descrições desconcertantes, que ora se assemelhariam ao Deus infinito, ora como o trabalho eterno inútil, no devaneio mais superficial de um artista. O absurdo ali seria a busca dentro da imagem, pela que nela nunca foi parte, o que dela seria apenas fragmentos deslocado de outras imagens, seria decompor as luzes para entender o que as produziria e constatar que o absurdo passaria, o aqui pararia, e a saída do tempo seria o absurdo num estado de afetos inéditos. Estar diante do absurdo da imagem-ausência seria, então, o mesmo que esses óculos dobrados e tudo o que ele veria. Tudo seria o encontro das potencias absurdamente outra.

Text 2024.

Onda, Photography, 2024

Certidão, Photography, 2024

,O prédio, Photography, 2024

Visita, Photography, 2024

Chegada, Photography, 2024

Outra Porta , Photography, 2024

Pedra, Photography, 2024

Buraco, Photography, 2024

O ESQUEMA DO MUNDO ENCANTADO

Nas veredas das imagens ausentes, busquei organizar com precisão, respeitando sua lógica intrínseca, sem, no entanto, usurpar-lhes o espaço. As figuras clamavam por um vão onde pudessem se manifestar e expandir, carregando consigo não apenas suas formas, mas tudo o que a mente concebia, imaginava e recordava a seu respeito. Ao buscar ordená-las, procurei definir cada processo em suas condições singulares: lidar com o que afeta e é afetado, algo impulsionado por um movimento, uma dinâmica singular. Como organizar algo que se esgueira, que muta a cada observar, que já não mais se encontra lá?

NPercebi que, por imagens, refiro-me a revelações do mundo, não meros símbolos ou vestígios de reflexão intelectual, mas a imagem como algo inerente à natureza. Algo que evoca algo em quem recorda, sugerindo que tal alguém está, também, sujeito a um fluxo constante. Afinal, somos sensíveis às imagens e suas forças. A imagem se torna, então, uma pista que desnuda a dinâmica dos afetos de forma sutil. E, oh, como são tênues essas imagens!

JContudo, na ausência, deparo-me com a impossibilidade do reencontro – uma sensação de algo que se esvaiu e se foi em movimento. Na ausência, ocultam-se os mistérios da velocidade, do corpo que se diluiu, deixando somente sua imagem em mim. Corpo que mergulhou no abismo do vazio. A ausência delineia fronteiras; é nela que percebo a existência de um vasto vazio que se movimenta.

O vazio é um apaixonado pelos afetos.

Ao esmiuçar os processos que regem as imagens, sob a ótica do movimento, por meio da ausência, constato que há um ser duplamente afetado: por essa dinâmica e cinética da presença-ausência. Um ser, que agora se constrói na presença-ausência. O agora é um grande enigma, um território formado por presenças e ausências, só existindo no instante do encontro.

Ao desvelar os processos que regem as imagens sob a ótica do movimento, por meio da ausência, constato que há um ser duplamente afetado: por essa dinâmica e cinética da presença-ausência. Um ser que, agora, se constrói na presença-ausência. O agora é um grande enigma, um território formado por presenças e ausências, só existindo no instante do encontro.

As concepções escapam, mas jamais almejaria roubar-lhes o espaço; busco apenas observar suas imagens para que a fuga se torne inútil. Definir as imagens pela ausência é lidar com o movimento das imagens nos afetos e nas fugas dentro do vazio do meu corpo, dentro da matéria do mundo. Quero vislumbrar a contínua desterritorialização da fuga, pois é nela que a ausência revela sua velocidade e o corpo se desfaz.

O agora é essa melodia entoada de presenças para ausência, é esse intervalo no movimento, no instante do afeto. Que se desfaz. O agora é simultaneamente criar e desfazer. Força construtora de vazios. Mesmo que seja o nosso intelecto o compositor dessa melodia do agora, ele jamais nos revela a sua razão; a melodia aparentemente se interrompe no movimento. No agora, a melodia pausa diante do afeto e é capturada.

A lógica do movimento da ausência é fluir entre os limites das linhas que fogem no horizonte do tempo. O mundo se expande e insiste em despertar em nossas lembranças, independentemente de qualquer ordem. Fazendo lembrar daquilo que nunca vivemos, é esquecer as lembranças num embaralhar de memória e imaginação. É um diálogo repetitivo entre memória e presente, liberando a possibilidade de um ser-tempo. Tudo me leva a crer que há um passado da imagem que nos persegue, assim como perseguimos seus sentidos.

Entender o movimento da ausência na medida do que é imaginado, lembrado e relembrado é o surgimento do vazio dos afetos que, por meio deste ser-tempo, é capaz de sintetizar o movimento da ausência e antecipar o que foi vivido, deixando restar apenas a falta.

Text 2022 edit 2023.

Entes, sculpture/photography, 2024

Untitled collaborative work with: Constantina Dali, Carlos Cavaleiro, Rafael Vascon, Diana Botas, 2021

IMAGEM LEMBRA MOVIMENTO

O que estabelece o presente é o encontro de corpos, afirmou Baruch Spinoza em 'O Tratado sobre a Emenda do Intelecto'. E a partir desse começo, nos é concedido o direito de ponderar o estado atual das coisas nas páginas do texto. Por associação, essas representações textuais, ao aludirem a entidades, embarcam numa prática de destilação, uma abstração dessas entidades. Pois as entidades referidas em um texto só podem se manifestar como declarações, nunca como entidades tangíveis. Assim, os textos despertam em nós uma experiência enraizada no passado, incitando uma recordação, onde a memória nos instiga a abandonar o momento atual e retroceder ao passado da entidade descrita. O texto, em sua essência, torna-se uma desordem nas crônicas do tempo.

Para a exposição de memórias, independentemente de sua natureza - seja textual, artística ou musical - se concretizar, é necessário primeiro renunciar às âncoras físicas do presente, pois nele apenas corpos existem, e buscar na memória o que não está presente. Ancorado neste paradigma, evocar a memória como um elemento temático nos convoca necessariamente a um movimento regressivo. Isso implica deixar de lado os atributos específicos das entidades para examinar o que delas emana em eras passadas. Uma exposição, portanto, metamorfoseia-se em um catalisador, nos compelindo a percorrer esse arco de regressão. E através do tecido das memórias, nos presenteia com uma experiência dual - evocando lembranças enquanto simultaneamente desperta o esquecimento - um mecanismo mnemônico.

O processo de discernir um tema apresentado, visto através da lente de um artista, materializa-se através da amalgamação de recordações vivenciadas tanto pelo artista quanto por nós. Um cenário onde distinguir entre o que foi imaginado, lembrado ou recordado pelo artista ou por nós mesmos torna-se uma busca intricada. Consequentemente, surge uma entidade duplamente influenciada por essas narrativas visuais, revelando facetas do mundo. Não meramente como símbolos ou signos de ruminações intelectuais ou racionais, mas como manifestações da essência daquele que recorda - vestígios de cultura, lugar e tempo.

Aspiro aqui a compreender essa imagem mnemônica que a memória carrega como uma entidade enigmática no mundo. Um corpo sem corpo, um presente ausente, em busca de metodologias que possam auxiliar na dissecação das imagens que nos constituem. Seguindo a lógica de Espinoza, memória e contemplação metamorfoseiam-se nas principais características para delinear entidades como imagens em movimento. Envolve adotar imagem, movimento e contemplação como preceitos orientadores nesse empreendimento intelectual. Em 'Cinema 1, A Imagem-Movimento', Gilles Deleuze mergulha na essência da imagem em movimento, tornando-as úteis para nossos instrumentos cognitivos:

"Cada imagem age sobre outras e reage a outras em 'todas as suas faces' e 'através de todas as suas partes elementares'. A verdade é que os movimentos são muito claros como imagens, e é inútil procurar em movimento algo além do que é visível nele." Deleuze p.67 Cinema 1 A Imagem-Movimento.

Com esse raciocínio, Deleuze busca conferir à imagem a forma do movimento, e essa estrutura encapsula a memória como matéria do mundo, na construção de um passado como materialidade, que daria conta do que foi retido pelo corpo e mantido na memória. E é nessa lembrança do passado que podemos nos libertar da tirania do pensamento governado pela ação dirigida a outro corpo. Uma resposta é, assim, elaborada, sendo também memória, ou seja, uma resposta que é uma ação que nos faz lembrar. Ou que repete sua ação. Nesse sentido, surge a pergunta: o que seriam essas memórias que nos fazem lembrar? E como a memória produziria as imagens da expressão?

Segundo Espinoza, memória é "... uma concatenação de ideias, que envolve a essência das coisas externas ao corpo humano, e não uma concatenação de ideias, que explicam a natureza dessas coisas." A memória não seria aquilo que explica o mundo e seus raciocínios, mas sim parte do que o mundo é ou foi. Ao mesmo tempo, é nessa imagem em movimento que só mostra movimento que Deleuze revela a existência daquele que recorda, num movimento duplo que vai do mundo ao indivíduo e do indivíduo ao mundo em busca de iluminar o que se vê. E, ao revelar quem pensa, revela também seu próprio presente. Aqui está a importância de compreender as imagens.

Esta construção evoca os sentimentos defendidos por Henri Bergson - a quebra ou interrupção da resposta sensoriomotora. Essa 'quebra' abre caminho para uma extensão da memória, uma cascata que projeta o pensamento para o presente. A memória de épocas passadas se transmuta em um agora efêmero. Esse 'agora', no presente, cristaliza a imagem da memória, uma entidade transportada de uma era passada para o momento presente. Assim, segundo Bergson, o virtual é estabelecido, lançando o atual em crise diante da percepção do tempo e da cronologia. A imagem da memória no agora é a ação que, através da memória, produz uma luz imperceptível, revelando o que não está presente, ou seja, revelaria o sentido.

O diálogo entre memória e presente, entre o agora e o passado, libera a possibilidade de uma entidade enraizada no tempo dotada de movimento. Essa entidade no tempo, que liberta o movimento, também simboliza a liberdade criativa que conquista, por meio da imagem em movimento, a imagem-memória. Essa liberdade do poder de criar no pensamento conecta-se com um passado dessa imagem. Dados esses elementos, a ideia de memória surge através dessa entidade, que é um agente no mundo capaz de contrair. E é na contração que conquistamos a capacidade de fazer síntese, num movimento de antecipar e repetir aquilo que foi vivido e capturado pelo nosso sensível, que será transformado em imagem mental, numa apreensão para que possa ser acessível no tempo das memórias.

Para fortalecer ainda mais o reconhecimento da contemplação como movimento através do som, é preciso reconhecer a onipresença da força atmosférica do som que envolve todo o mundo. Cada fragmento auditivo permeia os recônditos internos de nossa entidade corpórea e faculdade cognitiva. O som, com sua capacidade inata de infiltrar e entrelaçar-se com momentos, possui uma característica única. No entanto, minha fascinação reside em compreender a melodia - uma orquestração derivada da cadência dos sons, uma harmonia temporal de acordes e batidas, previsivelmente imprevisível. Uma manifestação artística proporcionada pelo ato de contração. Compreender a memória como sinônimo de melodia torna-se uma busca cerebral, contraindo a amplitude temporal do mundo e consolidando notas num pequeno domínio de memórias. Assim, a música se materializa - um ato de memória não confinado a respostas motoras, mas uma manifestação da memória, uma força que molda e intervém no mundo. Em essência, a música encarna o virtual, exigindo da memória uma atividade que amalgama contemplação. A imagem-lembrete, uma entidade que elabora o passado no presente.

A música abre uma passagem, permitindo-nos perceber o mundo como um continuum rítmico - uma tapeçaria infinita desenrolando-se dinamicamente. Essa postura contemplativa pulsa a cada arranjo orquestrado. O mundo, moldado por nossas percepções, interage principalmente nos contornos delineados por nossa cognição. É dentro desses limites que o tempo permanece suspenso, cada interação gerando um novo mundo e uma redefinição simultânea de nós mesmos. Mesmo que a causalidade da existência permaneça esquiva, a memória orquestra esses mundos numa linha do tempo, uma sucessão que desafia a linearidade. No âmbito da arte, um 'Eu' se manifesta - uma faceta integral suspensa na correnteza de compreender a liberdade temporal implícita nas composições melódicas. A memória, nesse contexto, contrai momentos em melodias, elaborando através do contato com outras entidades uma semelhança de si mesmo, uma consciência e um momento contemporâneo no tempo.

Esse momento presente metamorfoseia-se num território composto, onde a percepção de minha entidade corpórea e a matéria do mundo se revelam em diversos territórios simulados que se consolidam e desterritorializam numa repetição melódica compulsiva. A expressão nos submete às ideias, e mesmo que seja nosso intelecto que compõe o mundo que habitamos, este mundo não nos revela sua razão. Apenas a ação persiste para continuarmos construindo no campo do possível as estruturas que nos permitam conhecer as relações que meu mundo estabelece com outros mundos. E quais ideias dessa relação são possíveis, impossíveis e necessárias para fazer a memória recordar como uma imagem de nossa própria condição como seres no tempo. Portanto, sentir este mundo é fluir entre os limites de linhas que se dissipam no horizonte temporal. O mundo se expande e insiste em despertar em nossas memórias independentemente da ordem cronológica. Faz lembrar o que nunca vivenciamos e esquece memórias num embaralhar de arte, memória e imaginação.

Text 2021.

Travessa Vilallonga nº6. photo by Christiano Mere 2021

This poem is a play on words that presents the impossibility of translation, not into a foreign language, but in the words themselves in the relationship between lusophonic speakers of different countries.

Sabe pedra

Não tenho saber
Só sabores
Não sei fazer, sou
Só sei que não é sobre saber, mas sim sabores
Um sabor do saber que sabe sobre não fazer
E faz sem saber

Se me perguntar
Prefiro o sabor de um saber quando aparece
Mas não quero o que sabe o saber que domina
Quero saber que sabe livre
Que sabe vinda
Que sabe ida
E vai para onde não há palavras e faz-se muro
Que sabe amargo como pedra no mato

Meu sabor de pedra
Seu saber de pedra, que sabe tudo desde o começo
Só não sabe das confusões do saber e do sabor
Dos saberes das pedras que sabem

Stone knowledge

I don't have knowledge
Only taste
I don't know how to do, I am
I only know that it’s not about knowledge, it’s about taste
A taste of knowledge that knows about not doing
And does without knowledge

If you ask me
I prefer the taste of knowledge when it appears
But I don't want to know the knowledge that dominates
I want to know free knowledge
Knowledge that comes
Knowledge that leaves
And goes where there are no words to make itself a wall
That bitter knowledge of a stone in the grass

My taste of stone
Your knowledge of stone, that knows everything from the beginning
Only not knowing the confusions of knowledge and taste
Of the knowledge of the stones that know

Poem published on MAUVAISES HERBES 2020.

Photo by Christiano Mere 2019

Stone taste

I don't have knowledge
Only taste
I don't know how to do, I am
I only know that it’s not about knowing, it’s about taste
A taste of knowledge that tastes of not doing
And does without knowledge

If you ask me
I prefer the flavour of knowledge when it appears
But I don't want to taste the knowledge that dominates
I want to know free taste
Taste that comes
Taste that leaves
And goes where there are no words to make itself a wall
That tastes bitter as a stone in the grass

My taste of ston
SYour stone knowledge, that flavours everything from the beginning
Only not flavouring the confusions of knowledge and taste
From the knowledge of the stones that taste

PENSAR NO INFINITIVO

Associado ao infinito, o ser surge desprovido de substância. Compreendo a substância como a duração: a antítese do infinito. A substância, portanto, é o local ou estado onde o infinito se fragmenta. A substância é uma ruptura que delimita um início e um fim — mesmo que arbitrários. É uma pausa, um limite colocado no infinito. Na substância, percebemos e experimentamos o tempo, o espaço e essas forças construtivas do ser.

Tudo que emerge no mundo sem substância participa da condição de possível, uma ideia infinita em múltiplas singularidades simultâneas, carente de tempo e espaço, em oposição ao necessário e ao impossível. Através do possível, afirma-se a propriedade de ser indivisível e infinito.

Ao tentarmos compreender o pensamento pela proposição contrária ao infinito, ou seja, em algo que possui uma duração, entraríamos em contradição, uma vez que associamos o pensamento como sintoma do tempo.

Entretanto, essa situação se resolve na definição de infinito, onde o que não possui substância é infinito. Nesse sentido, o pensamento é como o próprio infinito em sua capacidade de existir. Ou seja, atemporal, indefinido e único. O pensamento é uma "coisa" sem substância, que, por similaridade ao infinito, também é vazio. O vazio do infinito ocorre em sua extensão eterna e na ausência de substância. Podemos compreender, por consequência, que a criatividade é o que dá ao pensamento duração, e ambos não possuem substância.

Agora, é possível analisar a duração do pensamento pela criatividade. No entanto, é necessário localizar a criatividade. A criatividade é causada por uma ação que advém de um corpo, e a ação é a condição onde encontramos a duração da criatividade.

Nessa temporalidade finita do pensamento pela criatividade, denominamos a ação como aquilo que opera a partir da substância, numa relação de degradação. O tempo, no pensamento, adquire uma dimensão originária de ideias, que se direciona à criação de uma superfície de experiência.

A ideia, então, passaria a ser a matéria do pensamento, mesmo que isso contenha uma contradição. Logo, as ideias não seriam causais, não possuiriam a potência de causalidade sobre os seres existentes, mas sim corpo no campo do pensamento, temporalidades determinadas no infinito.

Ao retornarmos à criatividade, ela passa a ser uma força transformadora, que se origina na ideia e captura as forças necessárias de causalidade. Logo, necessita de um agente para operá-la.

Esse agente é o indivíduo que habita tanto como ação no tempo finito das expressões quanto no espaço do agir e ser agido pelas forças. O indivíduo é aquilo que emerge da substância e compõe, nas ações, o ambiente num recorte do infinito. O ser é, por isso, finito.

Essa organização compreende a criatividade como uma força no emergir do tempo presente na superfície e, que só existe enquanto potência. Ou seja, o que está lá no tempo futuro, na condição de forças que recortariam o infinito por ser uma parte causal deste infinito.

Por outro lado, essas forças são responsáveis pela emergência ou decadência das expressões. Digo das ações transformadoras, ou seja, a criatividade delega duração não ao que está no tempo presente, mas às condições possíveis às quais a expressão aparece no tempo futuro.

Diferentemente do que se pensa, a criatividade não é livre, pois está subjugada às condições de degradação da ação que existe tanto na ideia quanto no tempo e acumula as condutas que são aplicadas ao indivíduo.

A criação cria o agora onde todo vivo tem um mundo próprio e, onde é sujeito. Toda criação transcende aos mundos próprios que funda, tornando o possível em necessário na superfície de sua existência. E, a partir deste ponto, se entendermos a criatividade como algo absolutamente infinito e, por isso, indivisível, poderíamos atribuir à criação um sentido transcendental de presença na superfície do ser.

Text 2020.

Ana Santos's studio wall in Portugal, photo by Christiano Mere 2020

CAIR DESPENCAR

In Cair, Despencar (Falling, Plummeting), I compare two speeds of time, expressed by the gap in velocity between two synonyms. The title follows the logic of its subject: the fall speeds up to a plummet. This relationship between word order and movement through time and space is the basis for my investigation into how the concepts of time and chronology affect language and semiology. I link the notions of infinite time and the artwork—as proposed by Marcel Proust in Le Temps Retrouvé and Du Côté de Chez Swan—from a sculptural perspective, to give a physical referent with which to consider metaphysical issues. Through my analysis, I create an inventory of concepts to understand and question the periodic organization of art, as well as the wider tendency to impose order via chronology. I use disorder as a tool to unbalance the structures of the art-historical timeline, in order to propose a non-teleological understanding of time, that untethers canon and rupture to float as chronology-free phenomena.

full article in Portuguese

article 13/01/2020

Photo documentation, photo by Constantina Dali 2019

NA IRREPRESENTATIBILIDADE DO MOMENTO

O texto a seguir é um fragmento resultante da convergência das minhas ações com a artista Ana Ferreira durante a residência Résvés em Castro Marim, Faro, Portugal. Nessa colaboração, exploramos uma entrelaçamento de performance, pintura e escultura, enfrentando a dificuldade de estabelecer uma distinção precisa entre os conceitos de "apresentar" e "representar". Essa reflexão coletiva aborda afetos, acontecimentos, encontros e transbordamentos na condição presente, conferindo uma poderosa expressão artística a esse encontro. A discussão orbita em torno da irrepresentabilidade do gesto artístico quando convocado a transcender o corpo e o momento presente da obra, tornando-se uma entidade sensível e original. Apresento, assim, uma reflexão que busca criar um espaço metafórico, um território fluido, um pensamento sobre os limites da representabilidade artística e as possibilidades inerentes a esse espaço.

"Território, afeto, lugar, encontrar, transbordar, transcodificar. São palavras que ressoam, ecoam, aproximam-se de uma lembrança daquele momento em que transbordei, sem forma, sem um corpo exclusivo, espalhando-me pelo espaço de inúmeros outros corpos. Ontem, abandonei a responsabilidade de determinar ou moldar o devir do tempo presente. Conferi ao rio e às estruturas despretensiosas a tarefa de conter o fluxo amorfo das águas. Das correntes, não dos rios.

Segui a trilha de um corpo, diante de uma relação inescapável da presença do presente nessas águas. Naveguei num agora que ecoava a solidão passada, atravessado pelo presente que se desvelava nelas. Nesse ontem de águas, não havia eventos, apenas a coexistência do presente e do passado. Corpo e território eram escassos, prevalecendo o ritmo na construção de algo a ser lembrado no amanhã. Um desejo, não uma vontade, que conferia múltiplas imagens ao tempo desconfigurado das formas desse rio.

No toque, encontrei compreensão para as carícias das pedras, o gesto na tela, na tinta ausente. No corpo libertado pelas correntes suaves de um rio de outras infâncias. Um rio que potencializa o que não se vê e que se recusa a revelar o que é. Ele apenas é, na sua mais pura simplicidade. Uma arte de afetos, uma etica desprovido de fundamentos ou regra. Mergulhando no rio das urgências do presente, não para se apaziguar, mas para percorrer os calafrios desse rio de pedras, rastreando os indícios dos limites sensíveis dos meus corpos e dos meus tempos."

exhibition and text 24/07/2019

NATURE OF SPACE by Elizabeth Hudson

‘The state of nature,’ intoned Hobbes ‘is nasty, brutish and short.’ Western philosophy’s enduring quote is not for civilisation, but against its perceived opposite – nature. Written in 1651, Leviathan strode amongst a cohort of reforms that pit ‘nature’ against ‘progress’. In the pre-industrial age there was no conflation between rural and natural; land and people were expected to be industrious, not wild. For this reason – and to bitter protest – British fens were drained, Portuguese baldios turned to commercial agriculture and Brazilian rainforests burned (and are still burning) for pasture. When civilisation is built on capital, vegetation must earn its keep.

In Nature of Space, Bruno José Silva and Christiano Mere probe the hybrid character of the Douro valley, where natural processes turned to industrial ends shape the landscape. Brazilian geographer Milton Santos – whose book of the same title provides the name for this show – describes nature not in opposition to industry or society but as the site of it, in his own words, ‘the physical basis of human labour’. It is labour that unites José Silva’s and Mere’s responses to the terraced vineyards; the intensive manual processes the artists used are central to the infrastructure of Portuguese viniculture. Yet what fascinates in this exhibition are not the methods, but the politics they expose.

A scenographic board holding a landscape photograph stands in the space. The scratched earth is desertified but not deserted: a monumental construction of green boxes snakes across the view. Composed of the packing crates that ship wine out to distributors, these too-green box terraces are the ‘luminous spaces’ Santos equates with the supersonic forces of global capitalism. Where British artist Rachel Whiteread might have turned these containers outside-in, José Silva focuses on their potential as building blocks. Despite the provisional nature of the balanced crates, they seem no more a work in progress than the heaped and gouged landscape itself. Named after the disease that precipitated huge shifts in both Portuguese agricultural practices and of the soil itself into terraces, Acto Phylloxera provides an aliens-eye-view of the terrain of trade.

Curve in Schistous, in contrast, is of a human scale. It forms a simplified socalco: the local artisanal method for creating terraces on hillsides. Fists, shoulder blades and thighs of dark, stacked rocks settle into a single creature that thrusts across the room. This technique has built homes, penned animals, buried dead and separated territories for millennia. These rocks have shaped the fields of Europe from before it was such. Appropriately the agricultural reforms that Hobbes’s civilisation grew amongst were predicated on the act of enclosing – of building walls such as these. The simplicity of Mere’s sculptural gesture is an eloquent unearthing of the forces – physical and economic – that shape space. The crowded stacks of stone recall the sticky pressure that morphed them from sediment to their present form. The rocks also speak of human labour, of their construction, of the construction of the landscape and of their role as cuckoo eggs amongst the people of this land. Though it could be a cousin to the stone works of Richard Long, Andy Goldsworthy or Sean Scully, Mere’s piece retains its own distinct character. The knapped schistous is as sharp as the comparison between the river Douro and the terrace walls, which allude to how ownership of land in the area is used to restrict water access.

Curve in Schistous and Acto Phylloxera have an aura of quiet permanence — akin to topological features — that belies the sweat and strain that brought them into being as well as the brevity of their actual existence. In this they express something of the afterlife (or perhaps hangover) of a civilisation. Should our current world order cease to be, or an industry fail, we will not leave a blank slate.

exhibition text 16/03/2019

Curve in Schistous and Acto Phylloxera. Porto, Portugal 2019.

SUBJETIVAÇÃO DA RAMPA

Impondo-se sobe as águas, o MAC flutua como quem procura novos ares. Se enche do novo a cada movimento. Movimento esse que traça a partir dos nossos olhos em um caminhar sinuoso e quase circular as suas formas e espaços, encontrando assim outro ponto de vista mais carregado de surpresa, que faz presente seu domínio (território) e, no mesmo instante, a abrangência de quem não possui fronteiras. Assim, expande a ideia de presença e sua ubiqüidade no recorte, uma estrutura que se faz física e metafísica em nossa subjetividade.

Discutir sobre suas formas e sua construção é perceber suas relações e provocações mais básicas com o espaço. Porém, é na rampa que Niemeyer concentra grande parte da força de subjetivação que a estrutura impregna no entorno. Não é correto de nossa parte precisar que esse seja um discurso de concepção, mas que de fato as estruturas nos levam a perceber questões, isso não podemos negar. A rampa, que a grosso modo nos leva para entrar no “raio” do museu, guarda em suas curvas questões muito interessantes.

Ao figurar a rampa como sujeito que nos conduz ao movimento de zig-zag, percorremos a distância não objetiva entre o pátio e a entrada, em círculos ascendentes que nos levam ao ponto de acesso. Os movimentos revelam novos olhares sobre as estruturas do prédio, quando do seu entorno sugere que a relação com a cidade não está somente no branco de suas paredes, nem com o negro espelhado dos vidros, mas sim com o momento presente do MAC e a sua capacidade subliminar de se situar no contemporâneo. Ao perceber que não percorremos a menor distância entre a entrada e o pátio, a seguinte pergunta se constrói: quando e onde começa a experiência de chegada?

Com os olhos atentos as formas, é possível perceber que da grade até a rampa colocamos de volta o questionamento se aquele é de fato o início. Logo, a questão sobre a ladeira da rua até a grade já faz parte de uma construção estrutural que flutua acima do horizonte, e que essa ladeira se apresenta como uma rocha abrupta em meio a beira da baía e, então podemos nos afastar até tudo se tornar memória, fazendo o MAC não mais ser figurado e sim lembrado enquanto essência. Assim, o começo está quando decidimos ir. Perceber que a trajetória do zig-zag está relacionada com a resiliência da memória que transita sobre o tempo em busca de novos significados agindo como um desfoque nas fronteiras do estar, chegar e conhecer.

Essa é uma obra que habita e se ergue na memória, e, acima de tudo, convida a olhar para a escuridão do tempo presente, que propõe transitar novamente em um vai-e-vem expandindo os limites para onde estivermos seguindo. Transformar a rampa em um sujeito criador sobre a sombra do presente é também ser tragado por ela em um movimento de vestir, unir-se-á na palavra contemporâneo propondo um refúgio para a construção de um futuro desconhecido, tal como a cidade que a observa e escreve sua história no esforço da retomada de ar necessária após a subida. Desse modo, a forma de taça brinda a rampa em um encontro harmônico estrutural.

texto publicado em 08/01/2016

Contemporary Art Museum (MAC). Niteói, Brazil 2016.